04 Agosto 2020
Por um projeto de Educação em Audiovisual para Crianças e Jovens no Brasil.
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Desde que fui convidada a colaborar com a EXIBIDOR, me propus a escrever textos que resgatassem a memória e que, também, refletissem sobre a situação do atual do ensino do audiovisual no Brasil.
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Impus-me essa missão porque sei como a formação é desprezada quando se trata da construção de uma indústria audiovisual no Brasil. Praticamente inexistem políticas públicas invistam na qualificação das pessoas que construirão a tão sonhada indústria, com qualidade e criatividade.
Deveria estar claro que toda a educação na área, nos mais diversos níveis, é mais do que bem-vinda.
Infelizmente são escassas, quase inexistentes, as ações que trabalham com o ensino do audiovisual no ensino formal, do fundamental ao médio. Como podemos almejar formar um público, em maior qualidade e quantidade, se crianças e jovens desconhecem as obras brasileiras? Essencial seria se o estudo do cinema e audiovisual fizesse parte dos currículos regulares das escolas, assim como a literatura e a música, com objetivo de construção do olhar e de formação de público.
Note-se que nossas crianças e jovens têm o audiovisual como realidade diária, assistem de tudo em seus gadgets, principalmente vídeos que não costumamos classificar como “de qualidade”. Ou seja: a linguagem audiovisual, em si, não faz parte da reflexão dessa moçada, que acaba por se tornar uma massa facilmente manipulável. E se pensarmos, ainda, no aquém do desejável número de crianças e jovens que frequenta as salas de exibição, vamos notar que estamos perdendo a batalha e que o final da guerra não é nada promissor se não defendermos, com unhas e dentes, que haja uma educação para o audiovisual, com foco no brasileiro, nas escolas públicas e privadas.
No ano de 2014 o senador Cristovam Buarque teve um projeto de sua autoria aprovado, tornando-se a Lei 13.006/14. Esse diploma legal cria a obrigação de exibição de, no mínimo, duas horas de cinema nas escolas, como complemento às atividades curriculares. Poucas são as pessoas que sabem disso, pois, lamentavelmente, a ausência de uma regulamentação eficaz não permitiu que essa importante norma fosse exitosa.
Em meu mundo ideal, nossos estudantes e professores deveriam ser dotados de habilidades reflexivas e críticas no uso e apropriação dos dispositivos midiáticos como ferramentas para educação. Será um desejo irreal?
Hoje pode parecer irreal, principalmente se considerarmos que sistematicamente vemos o governo federal atacar o ensino de humanidades e artes, atuando predatoriamente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mas isso está longe de ser utópico, pois educação e cinema caminharam juntas desde o nascer das políticas públicas para a área no Brasil.
Como história amplamente conhecida, o Decreto de n° 21.240/32, do então presidente Getúlio Vargas, foi o primeiro diploma legal que criou uma política pública para o cinema no Brasil, especificamente para a exibição, tornando obrigatória a projeção de filmes nacionais nas salas de exibição, cabendo a fixação da proporção da metragem mínima a ser incluída na programação a cada mês ao Ministério da Educação e Saúde Pública, onde a Cultura estava abrigada, e também versou também sobre censura.
O que não é tão amplamente divulgado é a criação do INCE- Instituto Nacional do Cinema Educativo em 1936, o primeiro órgão público para o nosso cinema, atrelado ao Ministério da Educação e Saúde Pública.
O INCE possuía a clara missão de tornar o cinema como instrumento de formação, a exemplo do que se deu em outros países, principalmente em regiões pouco alfabetizadas. Claro que também, a exemplo de outros países, o ensino não era visto como instrumento de libertação, pois isso é algo indesejável a qualquer ditadura.
Como ignorar o imenso poder (para o bem e para o mal) dessa primeira arte midiática?
Vargas reconhecia a importância ideológica do cinema, e pretendeu o transformar em uma correia auxiliar do ensino. Roquete Pinto, o grande mentor desse projeto, resumiu bem o intento: “nosso cinema tem que informar, cada vez mais, o Brasil aos brasileiros”.
Foram 3 décadas de existência, pelo menos formal, do INCE. Estima-se a realização de um número aproximado de 450 filmes em formatos médios e curtos, muitos com viés nacionalista e formativo, que versavam sobre a história oficial do Brasil, ciências, estimulavam hábitos de higiene, mostravam a natureza brasileira e faziam propagandas governamentais, entre outras coisas.
Os filmes produzidos tinham as mais diversas destinações, desde salas de exibição, projetados antes de longas metragens comerciais, até escolas.
Apesar de todas as corretas críticas quanto à instrumentalização do cinema para desenvolvimento de práticas “educativas”, censoras e controladoras, o abandono posterior de toda e qualquer política de disseminação do cinema junto às crianças e jovens é uma tragédia de grandes proporções.
Trágica, porque desvaloriza nossas obras, porque não estimula o espírito crítico, porque alija jovens dos processos de criação audiovisual de qualidade. Porque elitiza o ato de fazer e refletir.
Se nossas obras são estranhas à juventude, como ela serão apreciadas? Se a linguagem cinematográfica não for estudada, como nossas crianças e jovens poderão estar protegidas contra o enorme poder de manipulação que o audiovisual possui? E, em uma visão meramente mercantil: se nossas crianças e jovens não conhecerem e apreciarem as obras audiovisuais brasileiras, não teremos adultos consumidores de audiovisual brasileiro qualificado.
Citando políticas exitosas internacionais: na mesma época dos primórdios do INCE, os Estados Unidos estavam em pleno desenvolvimento do seu próprio “cinema educativo”, municiando as escolas com projetores, sem economizar nos custos dessa empreitada. E sabemos do patamar que hoje os EUA ocupam.
Como potência industrial cinematográfica, a Coreia do Sul também entendeu a importância da formação audiovisual, desenvolvendo políticas públicas fruto de parcerias entre o Conselho Coreano de Cinema e o Ministério da Educação. As políticas sul coreanas tem como missão qualificar para cinema em todos os níveis.
A França também é um grande exemplo da importância e eficácia do ensino do cinema desde a tenra idade. Pesquisas vêm demonstrando que os jovens franceses apreciam sobremaneira as obras nacionais e ocupam em massa as salas de exibição, ávidos por consumi-las em todas as telas. São duas décadas em que o Ministério da Educação francês vem aplicando uma bem sucedida ação de iniciação à arte com introdução da linguagem cinematográfica nas escolas públicas.
Essa experiência, é relatada por Alain Bergala, na obra “A hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola”, onde ele discorre que no ambiente escolar é possível conceber o cinema como espaço de criação e desenvolvimento de alteridade. O cinema educa quando provoca o pensamento crítico, quando, agregado à fruição, não se desloca da linguagem, do gesto criativo.
Essa vivência cinematográfica nas instituições de ensino deve ser tão rica, tão ímpar, que pode revolucionar as relações entre ensino-aprendizagem, desde que, isso é importante, supere a lógica do cinema como mero instrumento de transmissão de conteúdo, como ocorreu no Brasil em outras épocas.
Luciana Rodrigues
Luciana Rodrigues é coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP e professora na mesma instituição. É parecerista da ANCINE, colaborou na criação e foi presidente do FORCINE- FÓRUM BRASILEIRO DE ENSINO DE CINEMA E AUDIOVISUAL. É Doutora e Mestre na área do Audiovisual pela USP, possui bacharelados em Comunicação- com Habilitação em Cinema- e em Direito.
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