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Artigo / CINEMA

03 Julho 2020

Liberdade de Expressão

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Hoje falarei de um assunto que tem me deixado muito assustado: o surgimento de uma censura. E que vai contra um dos princípios fundamentais da civilização, que é a liberdade de expressão. Vivemos tempos que retomam um obscurantismo assustador, e pior, tentam se justificar por “bons princípios”.

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Este tema já está em pauta há algum tempo, mas para mim, o detonador da vontade de falar sobre isso, foi o episódio recente de retirada do filme ...E o vento levou da grade do canal HBO.

Li um artigo que dizia “o canal não censurou o filme, apenas tirou de cartaz”. Como assim? E o mais assustador é que o motivo da retirada, foi a reclamação de um artista, que dizia que o filme trazia uma visão da escravidão americana de forma romântica. Ora, todos nós somos produto de nosso tempo. Tentar alterar ou esconder o passado é muito pior do que enfrentar e discuti-lo. Veja quantos filmes foram feitos sobre o Holocausto; vamos retirar estes filmes de cartaz, pois podem trazer de volta o anti-semitismo? Ou legitimar as ideias nazistas? Claro que não. A maior parte dos filmes sobre o tema são produzidos e dirigidos por judeus, justamente com o argumento de “não vamos deixar as pessoas esquecerem, para que nunca mais aconteça novamente”.

O cineasta baseou-se num livro, escrito por sua autora. Ambos deram sua leitura de alguns personagens durante a Guerra Civil Americana. Aliás, nenhum episódio histórico é plano, preto e branco, sem nuances. Ninguém pode ser a favor da escravidão. Mas foram milhões de histórias. Nem todas iguais. Um artista pode e deve ter a liberdade de narrar como lhe aprouver. Lembro quando minha mãe me levou para assistir ...E o vento levou, no Cine Comodoro, numa reprise no final dos anos 70.  Cinematograficamente foi uma experiência impressionante. A tela era enorme. A sequência do incêndio de Atlanta, avassaladora. Mas lembro de perguntar, na saída, se os escravos eram bem tratados e minha mãe me explicou, muito bem, a forma sub-humana à qual eles eram submetidos. Ou seja, o filme despertou dúvida em uma criança.

Será possível que em 2020, alguém ainda não tenha entendido que a escravidão é uma chaga do passado de muitas sociedades? É muito paternalismo e falta de respeito com a inteligência alheia, imaginar que assistir a uma obra como …E o vento levou possa estimular desejos escravistas ou mesmo racistas. E de qualquer forma, se for o caso, excelente que o tema seja trazido para que possa ser explicado. Se tivermos que rever filmes, livros ou peças de teatro do passado, com esta lupa atual, pouco sobreviveria. Algumas das maiores obras da história não apenas apresentam a escravidão, como a aceitam como válida. Da Bíblia ao Alcorão, passando por Platão e Aristóteles, chegando a Shakespeare.

No final do ano passado, o grupo Porta dos Fundos apresentou uma produção na qual ironizavam a figura de Cristo. Muitas manifestações de grupos cristãos contrários,  pediram que fosse retirado do ar. Li muitos artigos nos quais eram comum frases como “volta do obscurantismo”, “ameaças graves à liberdade de expressão” entre outros. Porque a reclamação dos cristãos é ameaça à liberdade de expressão e a retirada de um filme clássico do cinema, não causa a mesma indignação?

Reli recentemente o livro Fahrenheit 451, que tem este título por ser a temperatura em que os livros queimam, e que se passa num futuro distópico. O filme é um ícone da repressão à Cultura. Sabe quem inicia a queima dos livros? Os próprios cidadãos! Não é o Estado. No streaming do Belas Artes À La Carte estreou recentemente um filme russo, marco da crítica ao nazismo, Fascismo sem máscara. Revi neste final de semana. Todo mundo lembra-se da horrível cena de livros sendo jogados numa enorme fogueira. A narração em russo nos alerta que quem joga os livros, são professores e alunos de uma universidade.

Todas as manifestações devem ser livres. Quem não concordar, que desligue a televisão, feche o livro. E caso sinta-se ofendido, manifeste-se publicamente com sua opinião contrária.  A liberdade de expressão na arte e na cultura é a pedra fundamental da civilização. Sem isso regredimos ao sectarismo, ao puritanismo e, em última análise, à barbárie.

E, fundamental: os piores episódios da história precisam ser repetidos e repetidos. Para que nunca mais se repitam!

André Sturm
André Sturm

Formado em Administração de Empresas pela FGV-SP. na política cinematográfica tendo sido diretor da ABD-SP, primeiro presidente da ABD Nacional, diretor da APACI, diretor e presidente do SIAESP. Participou de diversas comissões e conselhos do audiovisual nas 3 esferas de governo, com destaque por duas vezes no Conselho Superior de Cinema. Foi programador da Cinemateca Brasileira de 1989 a 1991. Criou a Pandora Filmes, distribuidora independente que lança filmes brasileiros e internacionais. Responsável pela programação do cine Belas Artes desde 2003 e por sua reabertura em 2014. Foi Coordenador da UFDPC da Secretaria de Estado da Cultura (2007-2011), sendo responsável pela implantação do programa ProAC-ICMS. Em 2006, criou o Cinema do Brasil, cujo objetivo é promover o cinema brasileiro internacionalmente. De 2011 até 2016 foi Diretor Executivo do MIS e seu Curador. De 2017 a 2019, assumiu a posição de secretário municipal de cultura de São Paulo.

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