23 Junho 2020
Acessibilidade - Idas e vindas da lei
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Você que está lendo este artigo provavelmente tem sua visão trabalhando em pleno funcionamento. E sua audição? Se um desses dois sentidos é uma questão para você, existem algumas limitações à imersão na experiência de assistir a um longa nos cinemas. A partir do dia 1º de janeiro de 2021, todas as salas de cinema do país serão obrigadas, sob pena de multa, a oferecer aparelhos de acessibilidade para deficientes visuais e auditivos. A determinação está na Instrução Normativa 128 de 2016, da Agência Nacional do Cinema. Mas é para acreditar nesta IN e nesta data? Esse assunto já se arrasta há muitos anos.
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Em 2015, sim há 5 anos atrás, a Ancine fez uma análise de impacto no mercado sobre o que significaria a implementação de conteúdos acessíveis nos cinemas. Mas pelo que se sabe não foi aos players - distribuidores, produtores e exibidores - sondar sobre o que isso significaria de fato para a indústria. De que forma impactaria no business de cada um dos pilares do mercado. Nenhuma análise ou projeção de público foi feita para apresentar a todos, qual seria o ganho social e em números de espectadores com este movimento. No fim do ano seguinte, em 13 de setembro de 2016, foi publicada a Instrução Normativa nº 128. O que deveria ter sido percebido como fomento, foi visto como uma imposição sem ganho - nem financeiro, nem institucional (de marca).
O prazo para que todas as salas de cinema do país se adequassem à nova regra venceria no dia 1º de janeiro de 2020, mas no dia 31 de dezembro Bolsonaro assinou uma medida provisória MP 917/2019, adiando o cumprimento da meta por mais um ano, ou seja, 1º de janeiro de 2021.
De acordo com a Agência Brasil, o governo alegou que o adiamento tornou-se imprescindível porque os recursos necessários para financiar as obras de adaptação das salas só foram liberados no dia 17 de dezembro.
A conjuntura é difícil: mudanças de Ministérios, Secretários de Cultural, de pastas que deveriam olhar para a indústria com mais atenção...mas o que também assusta bastante é o vai e volta de prazos e normas já definidos.
E neste assunto burocracia somos sempre pioneiros. Uma outra Instrução Normativa, a 145, publicada em outubro de 2018, altera alguns itens das INs 116 e 128. A 145 está ligada essencialmente a detalhes técnicos de cada conteúdo acessível, ao número de salas por título - filmes lançados com o máximo de 20 telas desobrigam o distribuidor a gerar conteúdo acessível, assim como festivais, mostras... e por aí vai. Esta Instrução Normativa também está com seus prazos "vencidos". Ela indicava que em 16 de junho de 2019, teríamos que ter 15% do total de salas preparadas para oferecer conteúdo acessível. Em 16 de setembro do mesmo ano indicava-se que a meta seria de 35%, chegando a 100% das salas em 1º de janeiro de 2020. Não foi o que aconteceu e seu público novamente ficou a esperar.
Mas como a maioria dos players do mercado já se preparam para atender de forma correta à lei, fiz uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório, para uma distribuidora de filmes, em 2018. Seu objetivo era analisar se seu conteúdo acessível era bem recebido pelo espectador ao qual se dirigia. O trabalho foi realizado com foco em grupos de crianças e adultos surdos e cegos, e alguns insights foram claramente notados. Vimos que os entrevistados não querem uma relação "paternalista" e esperam mais do que acessibilidade, esperam inclusão. A oportunidade de assistir a qualquer filme, em qualquer horário e se sentirem cidadãos como qualquer outra pessoa foi notadamente percebido ao longo do focus group.
Os entrevistados cegos disseram que "a expectativa é que a audiodescrição, seja apresentada com a maior riqueza de detalhes possível, para que eles mesmos possam interpretar e sentir o filme". Quando as pessoas surdas analisaram o intérprete de libras do longa, observaram que estes devem "incorporar a atmosfera do longa e seus personagens", interpretar. Ser expressivo em seu gestual, sem exageros…
Foi uma troca produtiva e intensa. Pude perceber que ainda existe uma lacuna bastante grande entre o que é hoje oferecido e o que realmente o público consumidor desta tecnologia, deseja e busca. Principalmente no que diz respeito à limitação de programações e horários com recurso acessível, que por conta da forma como a lei foi redigida, a relação "filme-circuito-horários" não atende a todos.
Dados apurados pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, de agosto de 2015, revelam que 6,2% da população brasileira têm algum tipo de deficiência: auditiva, visual, física ou intelectual.
Dentre os tipos de deficiência pesquisados, a visual é a mais numerosa e atinge 3,6% dos brasileiros. Já um estudo feito pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda revela a existência, no Brasil, de 10,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva.
A OMS aponta que existem 75 milhões de pessoas cegas no mundo e 500 milhões de surdos, em 2020. E faz uma projeção de chegarmos até 2050 ao número de 1 bilhão de pessoas surdas.
Algumas cidades do mundo já estão se preparando para este cenário. Em uma votação conhecida como Access City of the Year, Boras, na Suécia, foi escolhida em 2015 como a cidade europeia mais acessível. Em edições anteriores, levaram o primeiro lugar cidades como Ávila, na Espanha, Salzburg, na Áustria e Berlim, na Alemanha. A Europa ainda desponta com cidades que se preparam para atender melhor as pessoas com necessidades especiais.
Sabemos que não é simples por aqui. As salas precisam passar por testes e validação de equipamentos que possibilitem a exibição das obras com audiodescrição, janelas para intérpretes de libras e legendas descritivas na forma de closed caption.
E qual a minha provocação neste momento?
Bob Dylan, ganhador do Prêmio Nobel em 2016 disse: "No que diz respeito à tecnologia, ela torna todos vulneráveis. Mas os jovens não pensam assim. Telecomunicações e tecnologia avançada são o mundo em que nasceram. Quando vemos alguém com 10 anos, ele estará no controle em 20 ou 30 anos e ele não terá ideia do mundo que conhecíamos. Então provavelmente é melhor entrar nessa mentalidade o mais rápido possível, porque esta será a realidade."
É portanto fundamental que jovens, através da educação de base inclusiva, saibam a importância dessa pauta para que rapidamente, depois da reabertura dos cinemas pós pandemia, esse assunto possa ser tratado da forma devida. Os cinemas precisarão de espectador e de conteúdo acessível para oferecer uma experiência completa e imersiva na sala de cinema. É claro que no momento da retomada, não haverá um só exibidor sem dificuldades para a volta de suas atividades. Mas este é um ponto que precisa ser olhado com atenção para que a percepção de relevância deste assunto seja consensual e não tenhamos um novo adiamento decretado em janeiro do próximo ano.
Cris Cunha
Executiva com mais 20 anos de experiência na liderança de marketing de distribuição de filmes nacionais e estrangeiros. Esteve ligada ao lançamento, à estratégia e à distribuição de diversos longas, como: Cidade de Deus, A Vida é Bela, Madame Satã, Olga, Minha Mãe é Uma Peça, De pernas Pro Ar, Chico Xavier, Estômago, Todo Mundo em Pânico, entre outros. A partir de 2017, iniciou atividades ligadas à coordenação de lançamento de filmes - planejamento estratégico da campanha - e à realização de pesquisa de produto (quantitativa e qualitativa) para o segmento audiovisual.
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