Exibidor

Publicidade

Artigo / Legislação

22 Junho 2020

Contratos X Caso fortuito ou força maior

Compartilhe:

A pandemia trouxe à baila, de diversas formas, discussões sobre a possibilidade de revisão, cancelamento ou suspensão de contratos em razão de caso fortuito ou força maior. Setores econômicos têm se deparado com a inevitável paralisação das suas atividades, gerando reflexos diretos na operação daquelas pessoas que atuam na mesma cadeia produtiva.

Publicidade fechar X

Por exemplo, a SP CINE, dando cumprimento ao Decreto 59.283, de 2020, do Prefeito de São Paulo, cancelou as autorizações emitidas para filmagens em vias e locais públicos na cidade. Neste cenário, o que ocorre com todos os contratos que uma produtora celebrou com terceiros para a realização dessas filmagens? Como se resolve a situação jurídica desta produtora em relação ao agente financiador da produção, pois se a filmagem não pode acontecer, a produtora também não pode entregar a obra cuja produção se comprometera? E se a produtora financiou parte de suas despesas para a filmagem com um empréstimo bancário, deve devolver o dinheiro?

A primeira abordagem jurídica deste problema será a interpretação da pandemia como um evento de caso fortuito ou força maior. Porém, os seus reflexos nos contratos nem sempre serão os mesmos. Eles variam em razão de cada contrato específico, da sua natureza jurídica (empréstimo, locação, prestação de serviços etc.) e da existência ou não de cláusulas prevendo o que deve ocorrer nessa situação. Em outras palavras, pelo simples fato da pandemia ser um evento fortuito e de força maior, isso não acarreta a extinção automática de todos os contratos e obrigações.

 

Sobre o que estamos falando?

Caso fortuito ou força maior são eventos supervenientes, inevitáveis e imprevisíveis, que impossibilitam uma parte de cumprir a sua obrigação. Esses eventos são considerados riscos. A discussão sobre caso fortuito ou força maior envolve, portanto, definir em cada situação quem deve suportar os riscos. O locador ou o locatário? O banco ou o mutuário? O contratante ou o prestador de serviços? Caso as partes tenham endereçado essa problemática no contrato, elas alocaram o risco de uma determinada maneira. Caso não o tenham feito, o juiz terá de alocar o risco diante do caso concreto.

Esses riscos resultam na impossibilidade de alguém cumprir a sua obrigação (é por isso que se fala em risco, e não em dano ou responsabilidade, visto que a pessoa não cumpre porque não pode e não porque não quer). Consequentemente, essa pessoa perde o direito de exigir da contraparte que também cumpra a sua obrigação. Se isso ocorrer, em geral, o contrato estará extinto, pois ele terá perdido a sua causa. A impossibilidade precisa ser total e não parcial, ou seja, se algumas obrigações puderem ser cumpridas e outras não, o contrato não se extingue e o devedor deve cumprir a sua parte.

Além disso, a impossibilidade precisa ser definitiva e não temporária. Ora, uma epidemia é um evento fortuito temporário e não definitivo, pois a epidemia em alguns meses estará terminada. Eventualmente, as obrigações poderão ser adiadas, desde que prazo não seja elemento essencial do contrato. Assim, não é certo concluir que todos os contratos estarão extintos pelo evento de uma epidemia.

 

O dever de renegociar

A pandemia de corononavírus, por ser um evento imprevisível e inevitável, pode caracterizar caso fortuito ou de força maior de maneira a gerar efeitos para os contratos, quer se tratem de contratos empresariais, contratos de consumo ou contratos cíveis, como é o caso da maioria dos contratos utilizados em uma produção audiovisual. Não obstante, em razão de a pandemia ser um fortuito temporário, é provável que ela não resulte na extinção dos contratos afetados.

Ressalvada a hipótese de contratos para os quais o tempo seja elemento essencial, a execução das obrigações pode ser adiada para outro momento, por exemplo, para quando a pandemia tiver se encerrado. Esse pode ser o caso de muitos contratos para a produção audiovisual, pois o cronograma de produção dos filmes pode ser alterado sem que essa modificação resulte em inutilidade da obra para aquele que a contratou. Nessas hipóteses, deve-se indagar sobre quem arcará com o ônus do adiamento no cumprimento da obrigação. Além disso, será que esse ônus não previsto gera algum efeito jurídico para as partes, ou seja, é possível rever as condições do contrato? Além de possível, será que seria obrigatório para as partes reverem as condições contratadas?

O Código Civil brasileiro prevê que, em algumas hipóteses específicas, caso, como resultado de fortuitos imprevisíveis, ocorra onerosidade excessiva da obrigação de uma das partes, seja possível para esta parte pedir a extinção do contrato ou o seu reequilíbrio. Consequentemente, parece razoável supor que nessas situações as partes devam renegociar, em boa-fé, as condições originalmente contratadas. Nesse contexto, a renegociação poderá ser considerada como um dever das partes, e não uma mera liberalidade, e a violação a esse dever poderá ser sancionada.

Parece-nos que em momentos de extrema excepcionalidade, como este da pandemia, os tribunais poderão apreciar com rigor se as partes de fato engajaram-se de boa-fé na renegociação das suas obrigações visando a manter os contratos e, assim, evitar maiores prejuízos para todos. Acreditamos que as cortes deverão penalizar comportamentos oportunistas.

A análise sobre a possibilidade da revisão judicial de contratos, bem como da existência ou não de um dever de renegociar, deve ser feita caso-a-caso e diante das características específicas de cada contrato.

Rodrigo Salinas
Rodrigo Salinas

Sócio do escritório CQS – Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Mestre em Direito pela FGV Direito SP. Master of Laws pela Columbia University, Nova York. Bacharel em Direito pela FDUSP. Professor do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da FGV Direito SP. Membro do Conselho Especial de Direitos Autorais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Listado pelo Chambers & Partners como advogado especialista na área de mídia e entretenimento. Assessora clientes das indústrias de mídia e de conteúdo em geral (fonográfica, audiovisual, publicidade, editorial, dentre outras) nas áreas de propriedade intelectual, contratual e contencioso.

Compartilhe: