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Artigo / Audiovisual

16 Junho 2020

Sinais de um “Admirável Mundo Novo” no Cinema

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Quando uma catástrofe atinge uma determinada região do planeta é comum a ciência mensurar a “vulnerabilidade social” da população atingida. Basta pensar: um terremoto no Japão é completamente diferente de um terremoto, de mesmas proporções, no Haiti.

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Não há como negar que a pandemia de 2020 é uma catástrofe global. Para os Estados Unidos, por exemplo, os números de bilheteria, já em março, eram piores do que os do “11 de setembro”. Mas esses efeitos são completamente distintos em cada país, classe social e setor produtivo. Além disso, mais do que o brutal, visível e mensurável número de óbitos (qual, no mês de Agosto, tudo indica que o Brasil baterá recorde mundial), existem aqueles impactos ainda mais profundos, mas imensuráveis, como hábitos de afeto e de consumo, de percepção e participação na vida social que estão se revolucionando em todo o mundo.

Na nossa indústria e seus três elos da cadeia produtiva (produção, distribuição e exibição) os impactos, sem qualquer fatalismo, acontecem de forma extensa e irreversível. A começar pela catalização na capilaridade e volume do streaming, cujo papel emocional na vida das pessoas nesse momento aumenta ainda mais o vínculo desse novo hábito de consumo de entretenimento audiovisual.

A produção, parada em todo o planeta, levou a centenas de milhares de freelancers ficarem sem renda por meses, da noite para o dia e os estúdios a perderem bilhões de dólares. Salas de cinema fecharam em todo o mundo e estima-se que o setor tenha perdido algo como 5 bilhões de dólares nos últimos três meses. A vulnerabilidade de nosso setor produtivo a este tipo de catástrofe é alta, muito alta. Em alguns casos, comparável com o setor de turismo, certamente um dos mais atingidos.

Claro, a destruição criativa schumpeteriana, essência do empreendedorismo nos momentos de crise durante toda a história do capitalismo, nessa crise não se fez de rogada: possibilitou a redução dos sets de gravação ao mínimo de pessoas viável. Deu-nos sets dirigidos de maneira remota, por softwares, com Diretores no outro lado do mundo. Acelerou a corrida pela virtual production, usada mais recentemente na série Mandalorian e no Rei Leão (ambos da Disney). Somado a inteligência artificial, ela reduz ainda mais a equipe. O tempo de produção cai pela metade, aumenta segurança do projeto e se diminui custos de produção, além de produzir de maneira circular no processo, e não linear, como acontece desde o tempo do Melies. Voltarei a falar disso em artigos próximos, mas até por conta das próprias medidas de segurança da pandemia, o set já não volta a ser o mesmo.  

Cannes passou a exibir filmes em drive-ins montados na cidade e cancelou a 73ª edição na forma física. Determinou que vai distribuir seus filmes em outros festivais de cinema do 2º semestre. O local do Festival foi convertido em um abrigo temporário para moradores de rua. O Oscar e o Globo de Ouro modificaram seus critérios de elegibilidade para suas edições de 2021, exigiam que um filme seja exibido teatralmente por um período mínimo de tempo, não exigem mais. A Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood declarou que os filmes lançados por meios não teatrais (como o digital) seriam elegíveis. Isso é polêmico na indústria. Mas é um fenômeno esporádico? Até quando? Tribeca, SXSW, Greenwich International Film Festival estão entre grandes Festivais que criaram uma nova programação on-line em vez de realizá-los pessoalmente. Isso tem acontecido em festivais em todo o mundo, inclusive o de Brasília.

O governo local de Madri colocou dinheiro público em um cinema móvel para as pessoas assistirem filmes de suas varandas. E em Vilnius, na Lituânia, o aeroporto virou um gigantesco drive-in. Quase exterminados no Brasil, ainda nos anos 80, eles voltam a ser tendência em várias partes do globo. Destaque para esses projetos itinerantes de Drive-in, como no estádio Allianz Arena, em São Paulo. Será que viram tendência para grandes lançamentos? Lembremos que o cinema é cada vez baseado em experiência para o consumidor.

Entretanto, o assunto mais comentado ante a tragédia, em vários meios de comunicação, e, portanto, para mim o exemplo mais marcante da aceleração das transformações correntes no setor é o lançamento da Universal. Trolls World Tour foi lançado em plataformas digitais de aluguel e faturou US$100 milhões de dólares em suas três primeiras semanas. Esse número é muito maior do que o filme original dos Trolls, por cinco meses sendo exibidos nos cinemas e com um box office de 347 milhões de dólares em 2016. Nas pesquisas de mercado para o primeiro filme, os brasileiros tinham dificuldade de entender os personagens, que aqui eram os Magic Duendes. A trilha sonora de Timberlake era fantástica, mas o filme não foi tão bem.

A questão é que esse é um grande lançamento, bem avaliado pelo público no Rotten Tomatoes e que certamente foi favorecido pelos algoritmos de inteligência artificial das plataformas de maneira muito mais eficiente do que acontece nos lançamentos para o cinema. Ok, você dirá que é um lançamento infantil em pleno isolamento social das crianças, mas para esse público isso é algo muito semelhante as férias escolares, por exemplo. Como pesquisador desse tipo de tecnologia de distribuição, eu daria tudo para ver essas estratégias e números mais de perto. O filme, inclusive, entre lançamentos de 2020 é o único entre os 10 mais pirateados no Brasil neste mês. Um dado polêmico, mas importante. 

Porém, ainda mais polêmica foi intensa crise política no setor gerada pelo lançamento. O CEO da maior rede de cinemas norte-americana, a AMC, declarou que não exibirá mais filmes da Universal nos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio. Disse ainda que essa ameaça se estendia a qualquer cineasta que abandonasse as atuais práticas de janelas. E para complicar ainda mais a situação, como vimos, as novas normas de prêmios e festivais, como do Oscar, dão ao filme o direito de participar mesmo não estando nas salas de cinema.

Podemos apostar que algo tão agudo seja um acontecimento diretamente ligado a catástrofe da pandemia de 2020. Mas toda a tendência tecnológica que estamos discutindo por aqui lhe dirá o contrário. E se Trolls 2 já não é efeito da inevitável mudança de paradigma da 4ª Revolução Industrial, ele despertou o mercado.

Vários setores produtivos estão descobrindo como vender melhor pela internet com a pandemia. E a pandemia está mudando hábitos de consumo no mundo todo. Empresas e consumidores ainda estão descobrindo o digital. Para o cinema, esse é um sinal ainda mais forte do que a business intelligence e o streaming são capazes de fazer na distribuição de lançamentos de filmes de estúdio. E com as mudanças provocadas pela pandemia em todos os elos é óbvio que o modelo de negócio de nossa cadeia produtiva está vulnerável, como poucas vezes esteve na história.

Steven Phil
Steven Phil | steven@institutodecinema.com.br

Steven Phil é pesquisador da Educação e da Cultura pela Universidade deSão Paulo. É autor, diretor e produtor de cinema. Diretor Executivo do Instituto de Cinema e do Instituto Cultura e Mercado.

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